“Balada do café triste”

17/03/2009

Somos feitos de memória. E talvez, quem sabe?, de sonho. Mas também os nossos sonhos são provavelmente memória, pois que a imaginação é, como observa Borges, uma espécie de arte combinatória da memória, e os sonhos de futuro construímo-los sobre os desejos e os medos do passado. Por isso os políticos sem passado (como diria o futeboleiro Octávio Machado, vocês sabem do que estou a falar) tão ansiosamente procuram, seja evocando acontecimentos que não viveram seja citando livros que não leram, inventar para si alguma forma de passado.

Pelo Café Piolho, agora centenário, passou, pulsante de sonhos, grande parte da geração responsável pelo nosso sujo e mesquinho presente, e pergunto-me muitas vezes como foi possível que tantos se tenham entretanto transformado naquilo que combatiam. No próximo sábado, pelas 17 horas, está marcada para o Piolho uma tertúlia sobre as lutas estudantis, de que o lugar foi, nos anos 60, um semovente quartel. Será um encontro melancólico, povoado de fantasmas, pois se o Piolho é, para muitos, memória de fidelidade a si mesmos, para outros é o emblema da traição.

A régua e o revólver

PÚBLICO • SEXTA-FEIRA, 17 MAR 2006

EDUARDO PRADO COELHO

O FIO DO HORIZONTE

A régua e o revólver

Sobre uma mesa, um caderno com espiral, um telemóvel, uma caixa com tintas, uma régua e inesperadamente um revólver. Trata-se de um dossier sobre a violência nas escolas publicado no n.º 3, de Março, na revista Pontos nos iis, propriedade da editora Texto.

Uma professora dizia-me esta semana: “Eu dou-me bem com os meus alunos, mas o problema está em atravessar os corredores, porque nunca se sabe o que vai acontecer.” Na minha geração do Liceu Camões, a ideia de que um professor pudesse ser agredido, dentro ou fora da escola, seria totalmente incompreensível. Lembro-me de que ainda tínhamos dez ou 11 anos, o reitor Sérvulo Correia estava à entrada e dizia aos alunos que não traziam gravata: “Ó meu homem, vai buscar a gravatinha a casa.” E nós íamos. Para voltar vestidos como um notário de província, se é que esta raça em vias de extinção ainda existe.

São vários os pólos de que depende esta situação. Por um lado, os alunos e os pais. Por outro, os professores e auxiliares de educação (mais os diversos conselhos da escola). Por fim, o Ministério da Educação, misteriosamente pouco eloquente nestas matérias. Ora a verdade é que o pêndulo de terror recai inteiramente sobre os professores. E que todas estas circunstâncias afectam por dentro o trabalho pedagógico.

Uma professora do 1.º e 2.º ciclos do ensino básico, Joana Barra da Costa, procurou encontrar algumas motivações para esta forma de comportamentos. Do lado da explicação, não há propriamente novidades (ela fala de tudo isto numa edição da Colibri intitulada: O Gang e a Escola (Agressão e Contra-Agressão nas Margens de Lisboa).

Diagnóstico: tensão, choque étnico, a vida na periferia das grandes cidades ou ausência da família na vida quotidiana dos alunos. Temos ainda as condições em que se habita, a começar pelo lugar onde se habita. E como pano de fundo a pobreza, o desemprego, a existência ociosa. Nos meus tempos do Camões, era raro, mas acontecia, de vez em quando o professor dar um oportuno tabefe no aluno. Hoje é vítima de acusações e, de tempos a tempos, surgem os pais a falar como se o filho fosse vítima de uma perseguição escolar. Há um excesso de impunidade do lado dos alunos e uma incompreensão demissionária da parte dos pais destas encantadoras cabeças louras. Daí que a Joana nas suas aulas comece por dizer: “Quem manda aqui sou eu.”

A verdade é que os pais não controlam os filhos. Por vezes chegam a pedir para os manterem na escola porque não têm condições para os aguentar em casa. A família abandona totalmente a sua tradicional função formadora. A escola que resolva os problemas todos. E sejam quais forem as circunstâncias, os pais estão atentos aos direitos destes jovens. Mas os professores têm medo. Medo de represálias, de queixas absurdas, de métodos ditos pedagógicos impostos pelos “especialistas” tranquilos e abstractos do Ministério da Educação.

Entrevistado sobre o problema, o professor Mitthá Ribeiro (que ensina História) tem esta resposta exemplar: “Quanto à violência não é apenas a que se materializa em acto. Outra dimensão mais perversa da violência é a violência simbólica, isto é, aquela que pode nunca vir a concretizar-se, mas que afecta seriamente as relações da sala de aula e põe em causa a autoconfiança dos docentes, fundamental para o exercício da actividade.” Daí a necessidade de disciplina e de algumas formas de autoridade. Senhor professor, hoje trouxe pistola ou arma branca? Professor universitário